Responsabilidade Legal em uma Ordem Social Libertária

Tempo de Leitura: 7 minutos

Introdução

Evidentemente, de certo, é dever da ética estudar qual é a “lei correta”, a lei logicamente defensável; também é dever dela estudar o que é uma violação desta lei, o que pode ser, eticamente, punível e de qual forma – isso pois, embora os direitos de propriedade evitem todos os conflitos caso sejam seguidos por todos, eles não garantem que não haverão pessoas dispostas a violá-los – A conclusão a respeito disso não é tão simples quanto parece, e demanda uma análise lógica de conceitos como intenção e causalidade.[1]

Fundamentações Praxeológicas

Primeiro é necessário notar o que foi apontado por Kinsella, que agressões são um tipo específico de ações, sendo assim elas seguem as leis estabelecidas pelos axiomas da ação humana, usam meios e buscam fins, ou seja, são propositadas.

Agredir alguém, sem permissão, é um exemplo do tipo de agressão que os libertários se opõem. Se é ilegal agredir alguém, portanto, significa que é ilegal fazer com que outra pessoa seja agredida; ou seja, é ilegal usar objetos físicos, incluindo o soco, de maneira a causar contato físico indesejado com outra pessoa [2].

Isso, é claro, significa que comportamentos não propositais (que não são categorizados como ação) não podem ser agressões e logo não podem ser punidos. Por exemplo, uma pessoa que tropeça e esbarra na outra, fazendo com que ela caia e quebre a cabeça, ou então uma pessoa que tem um reflexo involuntário do corpo enquanto dorme e acaba dando um tapa na outra, estas pessoas estão tendo comportamentos não-propositais que não são ações, não podendo ser agressões.

Punibilidade

Em Propriedade, Causalidade e Responsabilidade Legal, Hans Hermann-Hoppe estabelece uma boa teoria, um bom critério, para a detecção de agressões, de quais ações são agressivas e consequentemente puníveis, com base na teoria de Adolf Reinach. Em contraste, aqui se argumenta que nem toda invasão física implica responsabilidade legal e, mais importante, que algumas ações são passíveis de responsabilização legal mesmo que nenhuma invasão física manifesta ocorra. Neste argumento, a esclarecedora análise de Adolf Reinach do conceito de causalidade no direito criminal (europeu continental) será valiosa.

Segundo Reinach ações, para que possam ser classificadas como crimes (ou seja, agressões, já que falamos aqui da ética libertária), devem ser condições de existência de violação intencionais ou negligentes cuja causa ou probabilidade de causa da violação pudesse ser determinada. Agora explicarei a teoria mais detalhadamente

A ação deve ser uma das condições de existência da violação, ou seja, deve ser uma das coisas sem as quais ela não existiria. Por exemplo, um assassino compra uma arma e usa ela para matar uma pessoa inocente, neste exemplo a ação do assassino de apertar o gatilho é uma condição de existência da violação, assim como a ação do vendedor de armas de lhe vender a arma.A ação deve ser intencional ou negligente, ou seja, aquele que pratica a ação deve ou desejar o resultado da ação, ou saber da possibilidade ou certeza do resultado criminoso, mas ainda assim praticá-la. Continuando no exemplo do assassino, o assassino que puxa o gatilho claramente deseja o resultado da ação, já o vendedor de armas caso desejasse que ele usasse a arma para o ato, ou caso soubesse do fato de que ele utilizaria, também passaria por esta parte do critério.

Agora, esta teoria é muito bem validada logicamente com o uso do estoppel de Kinsella (não o estoppel dialógico, o estoppel da proporcionalidade; conforme ele mesmo aponta em Causation and Aggression). Como argumenta Kinsella, pessoas que podem ser punidas, tendo a força usada contra si mesmas, são aquelas que não podem argumentar contra este uso da força sem que caiam em contradição, assim, pessoas que praticaram uma ação que foi uma condição de existência de alguma limitação do uso de algum meio legitimamente apropriado só podem ser punidas se sua ação for intencional ou negligente, caso o contrário ela não sabia do possível resultado e não pressupõe a validade do uso da força, podendo se defender sem que caia em contradição. Em ambos os casos, intenção e negligência, a pessoa deve pressupor a validade do uso da força contra pessoas para que possa agir, pois em ambos os casos ela sabia que sua ação levaria a uma violação, à iniciação do uso da força contra alguém que não aceitou este uso, e ainda assim praticou a ação, tendo que pressupor a legitimidade do uso da força e não podendo argumentar contra a legitimidade do uso da força contra si mesma sem que caia em contradição.

Assim, da mesma forma que comportamentos não-propositais não são agressão e não podem ser punidos, ações que causam alguma violação, mas cuja violação o ator não era capaz de prever não podem ser categorizadas como agressão; por exemplo, pessoas que compram bens roubados sem saber que o bem foi roubado, estas não estão agredindo ninguém, pois não têm noção do status do bem, logo a invasão da propriedade que é legitimamente de outro (o bem roubado) que fazem não é intencional nem negligente, elas podem se defender contra punições sem que caiam em contradição (embora tenham de devolver o bem assim que descobrirem a respeito de seu status), logo suas ações não são agressões.

Isso também leva à conclusão de algo já notado por Hoppe, para que uma apropriação aconteça e garanta ao agente o direito definitivo de propriedade sobre o meio ele deve criar entre ele e este meio um elo intersubjetivamente determinável, ou seja, um elo que possa ser determinado e verificado pelas outras pessoas. Uma pessoa que se apropria de uma terra, por exemplo, deve colocar algum indicador de sua apropriação, se não houverem indicadores de seu trabalho nela (como a imagem da terra arada ou de plantações brotando) ela deve colocar algo como uma cerca, caso o contrário ela não pode se queixar caso alguém use a mesma terra, afinal a pessoa não tinha como saber que estava violando o direito de alguém. Por exemplo: determinada pessoa pega um galho de árvore, analisa-o, planeja usá-lo para fazer uma lança e deixa o objeto no chão para pegar no futuro novamente; caso alguém veja o galho e pegue-o para si a primeira pessoa não pode se queixar, afinal não haveria como a outra saber do fato de o galho já ter sido apropriado; por outro lado, se a primeira pessoa escreveu no galho “propriedade de fulano, não usar” e a segunda ainda assim pegou-o, ela é culpada de violar a propriedade da primeira, ou intencionalmente (caso tenha visto o escrito) ou por negligência (caso não tenha checado o objeto para ver se tinha dono).

Proporcionalidade

Sabendo agora quem podemos punir devemos analisar também como deve ser esta punição. Kinsella já fez um ótimo trabalho a respeito deste tema, trabalho que já foi apresentado por mim de forma simplificada em outro texto, segue minha explicação:

Como toda a agressão é necessariamente o uso de um meio e como todo o uso de um meio gera necessariamente limitações no uso deste mesmo meio por outras pessoas, a punição deve consistir em uma limitação do uso de meios igual imposta ao agressor; por exemplo: suponha que uma pessoa de um soco na boca de outra, com seu ato ela está limitando o uso que a outra pessoa tem de usa própria boca (já que ela não poderá usá-la enquanto leva o golpe e já que poderá ter o uso restringido enquanto se recupera), uma punição proporcional seria socar a boca do agressor, embora esta não seja necessariamente a única punição proporcional disponível. A força utilizada na punição não precisa ser necessariamente feita da mesma forma e contra o mesmo tipo de meio, desde que ela envolva a criação de uma limitação proporcional de uso dos meios, assim punições podem ir desde castigos físicos até ressarcimentos financeiros, dependendo do caso. Kinsella também afirma que há um elemento de subjetividade na punição que abre margens para algumas variações e incertezas, isso por dois fatores, primeiro pelo fato de o valor atribuído pelos envolvidos (agressor e agredido) aos meios serem subjetivos e diferentes, tornando suas recepções dos usos da força diferentes, segundo pelo medo e pela incerteza gerados pelo ato da agressão; eu pessoalmente discordo desta parte, e pretendo esclarecer o porque em um artigo futuro [3].

Conforme apontei em meu texto anterior tenho uma discordância quanto ao elemento da subjetividade defendido por Kinsella, resta esclarecer qual discordância é esta. Conforme estabelece Hoppe em (não apenas, mas também) A Ética e a Economia da Propriedade Privada, qualquer um que defenda que ações são ilegítimas por alterarem o valor de determinado meio entra em contradição performativa, pois, sendo o valor subjetivo, qualquer ação pode alterar a valoração subjetiva de indivíduos de meios e os preços desses meios, uma norma que impedisse indivíduos de alterar o valor de meios estaria impedindo-os de agir e consequentemente levando à destruição da humanidade, e como você deve pressupor a própria sobrevivência para que possa argumentar, caso defenda uma norma dessas cai em contradição performativa. Segundo Hoppe existem duas possibilidades do que podem ser violações, a alteração do valor e a alteração da integridade física, e sendo a defesa da ilegítimidade da alteração do valor ilógica, sobra apenas a alteração da integridade física como uma real violação de um direito de propriedade, por isso o elemento de subjetividade na teoria de Kinsella  pode não estar correto.

Não acredito que este conflito entre as ideias dos dois autores tenha sido algo proposital (não acredito que Hoppe estivesse de alguma forma respondendo a Kinsella), mas sim que ele surgiu e passou desapercebido.

Assim os valores atribuídos pelos indivíduos aos meios envolvidos na agressão não importam, a punição será objetiva e, proporcionalmente, uma limitação de uso de meios imposta ao agressor igual à imposta à vítima por ele.

Conclusão

Assim temos um critério completo para que ações puníveis, assim como suas punições, possam ser determinadas (em estrutura Agressor vs Agredido; para facilitar entendimento e por definição): Houve, por parte do Agressor, uso de algum meio?; Este meio é correspondente à autopropriedade do Agredido, ou a algum meio apropriado por ele via primeiro uso ou contratos legítimos, i.e. propriedade privada?; O Agredido não consentiu este a ação, que utilizou como meio dos seus bens, do Agressor?; Este uso não foi uma resposta a alguma agressão feita pelo Agredido?; Havia como o Agressor saber que o meio pertencia ao Agredido?; O uso foi intencional ou negligente?; Se a resposta para todas as perguntas for sim”, então aquele que usou o meio tem responsabilidade legal sobre a violação da propriedade do outro e pode ser punido, a vítima, após provar que houve agressão, deve estabelecer a punição, e o agressor, caso acredite que a punição proposta por ela não corresponde a uma limitação de uso de meios imposta a ele igual à imposta à vítima por ele, deve provar que a punição não é proporcional; e o julgamento seguirá até que a vítima proponha uma punição que não seja negada como proporcional pelo agressor, ou até que o agressor não consiga mais provar que a punição proposta pela vítima não é proporcional, aplica-se então a punição.

Revisão por Mateus Almeida.

NOTAS

[1] Antes de começar minha análise gostaria também de recomendar a leitura dos dois textos a respeito de ética libertária que escrevi antes deste, os conhecimentos contidos neles são de suma importância para o entendimento do tema do presente texto, seguem seus links:

Ética Argumentativa Hoppeana

Teoria Legal Kinselliana

[2] Tradução de: Hitting someone without permission is an example of the kind of aggression libertarians oppose. If it is illegal to hit someone, however, this means that it is illegal to cause another person to be hit; that is to say, it is illegal to use physical objects, including one’s fist, in a way that will cause unwanted physical contact with another person (Tradução do editor).

[3] Original em: Teoria Legal Kinselliana

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