Deduzindo a Ética Argumentativa

Tempo de Leitura: 34 minutos

Ética Argumentativa: O arcabouço filosófico e a dedução da ética de propriedade!

Autor: Daniel Miorim de Morais

Co-Autor: Renan Leonardi da Silva

André Folloni em seu artigo

“A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL PRAGMÁTICA DE KARL-OTTO APEL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A DEFINIÇÃO DO PAPEL CONTEMPORÂNEO DA CIÊNCIA DO DIREITO”

para o periódico Publica Direito em 2013, explicita o argumento de um grande autor; Karl Otto Apel. Depois de Heidegger e Nietzsche, a filosofia parecia ter perdido sua base mais elementar: a da metafísica. As coisas deveriam ser reformuladas. Kant havia sido derrotado em campo de batalha, primeiro pelos niilistas e depois por Nietzsche. A razão instrumental se encontrava perdida. Os questionamentos básicos precisavam ser refeitos.

“A Filosofia transcendental, em sentindo kantiano, ultrapassa as considerações a respeito do que é para buscar as condições que possibilitam o entendimento, na virada da ontologia para a consciência do sujeito.

Kant compreende transcendentalmente a Filosofia, e busca definir quais as condições do sujeito, pensado como certa abstração do mundo concreto no qual desde sempre se insere, da intersubjetividade, das paixões, das pulsões.

Essa vida, porém, torna-se inviável a partir de Nietzsche. Apel propõe-se recuperar a transcendentalidade como tarefa própria da Filosofia. Se cabe à Filosofia ser crítica, é preciso, antes, delimitar os pressupostos diante dos quais a crítica é possível. (2000a, p. 22).”

A primeira coisa a entender é que Apel é um crítico. Um percursor da razão crítica que dá origem a escola de Frankfurt de pensamento. Cria-se aqui um confronto. Kant é um “não cognitivista”, acredita que somente através da razão instrumental, da razão sem juízos, é possível alcançar um comportamento ético. Ou seja, ele diz que a verdade se revela e não cria um ambiente de verdadeiro e falso ético.

Se usarmos a proposição “não cognitivista kantiana”, basta que a razão humana chegue a um raciocínio verdadeiro simultaneamente ao kantiano que os dois possuam igual valor verdade.

Ora, se a ética é objetiva, como pode ela ter dois raciocínios igualmente corretos? Duas ações que são igualmente éticas embora diversas diante de uma mesma situação. Em que para kantianos, ela é antiética e para o outro escopo ético, ela é ética, como ela poderia ser resolvida? Isso significa que esse não é o caminho para uma ética universal. Deve-se encontrar um denominador mínimo para o alcance da razão. Essa é uma proposição apelliana que Habermas herda e Hoppe utiliza sabiamente. Kantianos não podem ser considerados como propositores éticos válidos, eis que incapazes de limitarem a verdade a um caminho único. Sobre a premissa inicial que advém de Nietzsche e Heidegger e da qual Apel utiliza de plataforma.

“O papel de fornecer uma fundamentação última, portanto, não cabe à Ciência. Era da metafísica, mas também deixou de sê-lo quando a própria metafísica implodiu. Sem poder voltar à metafísica e sem poder confiar na Ciência, a tarefa de uma fundamentação última ficou abandonada, e deu espaço ao relativismo, ao decisionismo e ao ceticismo. O declínio da metafísica, e a auto compreensão da Ciência como impotente para oferecer uma fundamentação última, levou à relativização ética.

Isso angustia APEL, descrito como um racionalista e um ético de rara sensibilidade, dotado de forte senso de responsabilidade histórica (DUSSEL, 2002, p. 182). Para APEL, a fundamentação última filosófica não é só necessária: ela é urgente (1993, p. 309). E é urgente diante da situação socioeconômica e ambiental contemporânea, em que o progresso da técnica e a avaloratividade da Ciência podem levar à destruição da espécie humana (1994b, p. 160)”

Esse texto demonstra ativamente de que forma Apel se sentia incomodado profundamente com o relativismo ético a qual a metafísica foi submetida. Bem, a busca de Apel era uma busca muito complexa. Qual era o elemento a priori da qual todos os indivíduos poderiam ser lidos? Qual era o elemento fundamental para encontrar uma ética comum e realmente universal? Apel se apropria então da linguagem. Diferente da consciência, Apel decide que da linguagem seria possível fazer a construção de forma pragmática. Eis que necessariamente comum a todos os homens e necessariamente elemento a priori da compreensão humana. A consciência, a razão instrumental, elas obrigatoriamente não possuem elo comum universal. Senão, seria dado a todos chegar nas mesmas conclusões racionais e impossível seriam a adoção de éticas paralelas.

“Contra esse ceticismo, a Filosofia apelliana assume a pretensão e a tarefa de enunciar um a priori necessário, que nenhum argumento poderá deixar de levar em consideração, sob pena de desautorizar-se enquanto argumento válido. Se essa tarefa não pode ser científica, nem metafísica, deve ficar a cargo da Filosofia — mas de uma Filosofia diferente, pós-metafísica. Uma nova Filosofia, reaproximada da fundamentação prática do saber, inclusive do científico, deverá ser tentada.

O caminho, para APEL é a consideração da linguagem: o filósofo incorpora, à Filosofia transcendental kantiana, a pragmática e a intersubjetividade linguística enquanto um constitutivo originário do ser no mundo e do interpretá-lo (SANTUÁRIO, 2005, p. 155). Assim, a transformação da Filosofia em APEL é, fundamentalmente, a metamorfose da Filosofia transcendental kantiana, de uma Filosofia da consciência para uma Filosofia pragmática da linguagem, uma pragmática transcendental da linguagem que depende da inserção originária intramundana e da pragmática linguística (2004, p. 260).”

Aqui, temos então algumas considerações apellianas a serem feitas. A primeira consideração apelliana é a concepção tirada de Heidegger de que somos seres no mundo, encaramos o mundo e fazemos ativamente parte dele como pessoas. Daí ele considera que para argumentar, é necessário reconhecer alguns pressupostos argumentativos básicos.

“Se somos em linguagem, e se, por isso, somos sempre “com”, em comunidade, então estamos, desde sempre e para sempre, inseridos em uma comunidade de comunicação. Toda construção sintática ou semântica depende, em última análise, do entendimento mútuo. Por isso, APEL destaca a inviabilidade da análise linguística que olvida o uso concreto da linguagem: se a resposta, a respeito da verdade empírica de uma proposição, depende de um acordo mútuo acerca do sentido, então depende também da consideração da utilização concreta da linguagem, inclusive a científica”.

A análise de uma comunidade comunicativa da qual todos fazemos parte. E na qual se amparam as proposições filosóficas de mundo.

E tendo em vista que, se ignorarmos essa comunidade comunicativa, obrigatoriamente estamos ignorando o pressuposto ético mais básico; O de criar um comportamento humano universal que leve em conta o Homem como ser racional e capaz de escolhas. Se o ambiente no qual faz escolhas e é escolhido, não é levado em consideração como propositor, ele obrigatoriamente chegará a uma conclusão incorreta no mundo pragmático.

Nosso grande mestre Apel, entretanto, teve desafios, como o famoso e divertido mito do dado searleano que na época tinha o corpo de trilema de Münchhausen. Que basicamente dizia que a toda fundamentação deve se preceder outra. Ou seja, como fundamentar as proposições éticas? Qual o mínimo do qual vai partir para dizer quando é que estamos obedecendo os pressupostos argumentativas racionais? Do que é composto o a priori argumentativo afinal? Qual a última fundamentação possível para o analisar argumentativo? Apel afirma que sob os pressupostos do conceito científico de racionalidade, descabe qualquer tentativa de fundamentação. Ou seja, os elementos de análise da razão obrigatoriamente têm um limite no conceito científico da mesma. Não há como regredir mais do que isso.

“Para APEL, pensada pragmaticamente, a fundamentação propriamente filosófica escapa do trilema. Pragmaticamente, a argumentação pressupõe que pode ser tida como verdadeira, ou, pelo menos, como convincente, por seus destinatários. Pragmaticamente, todo aquele que argumenta, argumenta no interior de uma comunidade de comunicação, diante de outros, e pretende que esses outros possam concordar com seus argumentos — ou, minimamente, compreendê-los. Nenhuma argumentação é solitária.

A própria refutação de uma teoria científica depende de que se tenha por válida certa argumentação. Nesse sentido, explica APEL, tendo em conta a seleção darwiniana de teorias científicas: “O fato da falsificação de uma teoria não é espontâneo como, por exemplo, a extinção de uma espécie, mas ela deve ser primeiro aceita por nós como tal com base em argumentos, portanto, fundamentações” (1993, p. 310). Quem argumenta, faz em nome da verdade, e procura convencer os outros de seu acerto. Isso pressupõe, necessariamente, a aceitação de algo como uma pretensão de verdade, e o que isso significa. A ideia de verdade é pressuposta até da argumentação que a nega, ao pretender-se verdadeira.”

Chamo atenção a todos aqueles aos quais até agora fizeram proposições insanas no sentido da argumentação solitária. Eles estão fundamentalmente errados. A filosofia apelliana nega veementemente a possibilidade da argumentação solitária, eis que a argumentação pressupõe a busca da verdade. Reconhecemos o mundo então de forma pragmática. Ou algo possui valor verdade, ou algo é falso. Mas analisamos o falso justamente em contraponto ao verdadeiro. Então qualquer proposição pressuporá outra proposição também feita e que tomou a si os ares de verdadeira e que é externa ao indivíduo que está argumentando.

Quando um indivíduo agora disser que Hoppe não considera a argumentação individual e, portanto, está errado. Vocês saberão que esse indivíduo definitivamente não conhece a pragmática apelliana.

Os seguintes são os pressupostos do à priori argumentativo:

“A existência de algo como verdade, diferente da falsidade, A existência de proposições que podem ser tidas por verdadeiras, a existência de proposições a respeito das quais pode haver concordância intersubjetiva, a existência de uma comunidade de comunicação, na qual tal concordância pode ou não se dar, e, por fim, certas regras que funcionam como condição normativa da possibilidade de discussão. São elas: o reconhecimento do outro como um igual falante e a não violência no uso do argumento.”

“Esses pressupostos, enunciados por APEL como necessários a qualquer argumentação, estão postos a priori da própria argumentação. É porque eles sempre estão pressupostos que toda argumentação é possível. Eles estão desde sempre subjacentes a toda e qualquer argumentação. Mesmo argumentar contra esses princípios é algo que não se pode fazer sem os pressupor. Quem argumenta contra esses princípios, cai em “contradição performativa” ou “contradição pragmática”.

Esses são os requisitos apellianos. Toda e qualquer análise do a priori argumentativo que não tenha como requisitos básicos esses elementos, obrigatoriamente é uma falha de percurso que desconsidera a própria filosofia transcendental pragmática. Continuando, pelo último trecho, temos a introdução da contradição performativa. Essa contradição performativa é a que vai acontecer depois ao argumentar-se contra a EA. O que Hoppe faz é acrescentar o elemento de auto propriedade que ele vai extrair do mundo da vida habermasiano para fazer funcionar. Mas o que aqui já precisa ficar claro é que o a priori argumentativo é o que força a contradição performativa, não a auto propriedade. Ele é o arcabouço real da contradição performativa, embora exista uma contradição física performativa evidente no não reconhecer da auto propriedade.

“O conceito de contradição pragmática ou performativa está entre os mais importantes e fundamentais da Filosofia de Karl-Otto APEL. Ele baseia-se na diferença pragmática entre o ato de falar e o conteúdo falado; entre a parcela performativa e a parcela proposicional do falar humano. Então, é uma contradição que não decorre da relação sintática das proposições entre si, ou da contradição semântica entre as proposições e seu referente exterior à linguagem. Resulta, sim, da incoerência entre o que é dito e o contexto pragmático no qual aquilo é enunciado.

Dá-se contradição performativa sempre que alguém tenta negar, com seu desempenho, o que implicitamente precisa aceitar para poder ter tal performance. Assim, todo aquele que nega os pressupostos de APEL, ao fazê-lo, argumenta. Se argumenta, pressupõe que pode ter razão, que pode estar com a verdade, que pode atingir consenso, que seu argumento pode ser melhor que o argumento contrário, que pode ser bem compreendido. Pressupõe, portanto, que há uma comunidade de usuários da mesma linguagem capazes de compreendê-lo. Ou seja: é impossível argumentar contra esses pressupostos sem aceitá-los.”

E aqui a gente tem a explicação do transcendental nos conceitos apellianos:

“O filósofo encontra a transcendentalidade da Filosofia não mais na pergunta sobre as condições de possibilidade de conhecimento, sempre inscritas a priori no sujeito kantiano. Mas, sobre as condições de produção de sentidos válidos na comunidade intersubjetiva de sujeitos, que sempre estão em mútua comunicação. “

Não se trata de um transcendental individual, mas um transcendental humano. Que decorre justamente do enxergar da comunidade proposicional.

“O esforço de APEL, para, no âmbito do trabalho filosófico, encontrar as condições reflexivas de possibilidade de toda argumentação, condições pressupostas em uma comunidade ideal e contra fática de comunicação, não permite encontrar nenhum critério fenomenológico ou de correspondência, em sentido tarskiano, para possibilitar seja verificada a verdade de determinado conhecimento. Seu sentido é outro: é normativo. Ela projeta critérios normativos para um consenso intersubjetivamente válido, embora falível e provisório. Prescreve critérios que, caso observados e na medida do possível, garantem validade a um discurso com pretensões de racionalidade.

A fundamentação última é desses critérios filosóficos e reflexivos de validade do consenso, isto é, das condições de possibilidade de todo conhecimento intersubjetivamente válido, e não de uma verdade dogmática definitiva. Esse discurso válido, no entanto, está sempre sujeito à superação por outro discurso que, praticado dentro das mesmas regras, revele algo ainda não pensado, no plano do argumento, ou não percebido empiricamente pela comunidade real de comunicação. Assim, se a prova empírica refuta determinada teoria, a aceitação dessa refutação imporá, pragmaticamente, falsidade à teoria. Assim, Filosofia e condições científicas de verdade convivem, cada um exercendo a tarefa que lhe é própria.”

Temos aqui então o momento em que abandonamos a Apel por ter sido superado por seu pupilo Habermas. Apel diz que o consenso é provisório. Que as proposições possuem cunho normativo e reflexivo, mas podem ser substituídas por novas proposições que respeitem o a priori argumentativo e coloquem novos elementos para dentro da análise ética plausível.

“De acordo com o filósofo, contudo, a ética do discurso não subsiste com apenas um plano de fundamentação reflexivo-transcendental das condições filosóficas da fundamentação de normas. Ela precisa, ainda, levar em conta o que APEL chama de “fundamentação concreta” das normas éticas. Não só as normas pragmático-transcendentais são suficientes: as normas éticas para cada situação concreta vão além das normas enquanto condição de possibilidade do discurso. Estas são obtidas reflexivamente como a priori da própria argumentação. Aquelas normas concretas, situacionais, diferentemente, são obtidas a posteriori, no âmbito da argumentação racional levada a efeito de acordo com as normas apriorísticas. “

“Isso depende de que a norma seja obtida em uma situação argumentativa na qual as regras reflexivo-transcendentais e empírico-científicas tenham sido respeitadas, e à medida desse respeito.

Essa racionalidade não significa definitividade: o conhecimento base para a enunciação de normas éticas racionais é falível, e está, provisoriamente, corroborado. Enquanto não sobrevier um argumento melhor, que abale o consenso e possa impelir os argumentantes na busca por um conhecimento melhor. “

Essas proposições então substituiriam as antigas por quebra pragmática de sentido e se tornariam o mais perto da verdade para a dada comunidade. Mas, isso sendo verdade, inevitavelmente teríamos uma verdade ética não permanente! É aí que entramos no nosso segundo dos 4 autores que aqui serão analisados: Habermas.

Ética do Discurso Habermasiana

Continuamos nossa trajetória, analisamos o A ética do discurso em Habermas

Aqui nós temos fundamentalmente dois conceitos dos quais iremos nos usar: a ética do discurso e o Lebenswelt com seu mundo da vida habermasiano. Sobre o Lebenswelt, eu usarei de um texto do João Victor Aragão que de tudo disse:

“O “Lebenswelt” possui várias formulações; embora Husserl tenha sido o primeiro a cunhar esse termo no “A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental”, houve versões do mesmo conceito em Merleau-Ponty e em Juergen Habermas. Acredito que, para esse post, o último talvez seja mais pertinente.

Habermas entende o Lebenswelt como um conjunto de parâmetros (sejam eles crenças, critérios, valores, definições, etc.) compartilhados entre falantes que serve de pano de fundo para sua comunicação. Esses “parâmetros” devem, segundo ele, ser destituídos de controvérsia, possuindo como característica não serem passíveis de problematização. O Lebenswelt ainda pode ser entendido possuindo uma dimensão sociológica, no sentido de que opera como uma contraposição às formas institucionalizadas da sociedade, correspondendo a cultura, personalidade e sociedade, e tudo o que derivar deles.

A ideia do Lebenswelt é corresponder a um acerco de concordâncias, ao que constituem os mecanismos aos quais os agentes sociais podem recorrer quando encontrarem em desacordo sobre aspectos internos da sociedade. Funcionando como um ponto-pacífico entre interlocutores, onde estes reconhecem determinados consensos sobre a utilização da comunicação linguística para determinarem as resoluções de suas práticas sociais. Aqui o mundo-da-vida possui uma conotação pragmática-linguística.

A respeito da sua existência, eu vou colocar de uma maneira condicional.

“Se você parte da inevitabilidade da argumentação e da comunicação humanas para provas a existência de seus pressupostos necessários, então a resposta é verdadeira”.”

O que precisamos ter em mente é que para Habermas, todos possuem racionalidade. Existe um conceito de universalidade racional comunicativa. O único elemento em comum é a possibilidade de discordância racional entre indivíduos. Ele difere o mundo em duas grandes etapas racionais: a esfera pública e a esfera privada. A esfera pública é a esfera na qual a ação per si se dá. A esfera privada é a esfera na qual a ação é decidida e escolhida, intuída por si só.

Para entender a ação que se dá na percepção empírica, retornamos ao mundo da vida e analisamos sua ação na esfera privada através de elementos que podem vir a pertencer a comunicação de qualquer indivíduo. Veja bem, diferente da análise apriorística da coisa, que é essencialmente individual, nós temos uma “espécie de” análise apriorística de cunho coletivo, que se dá no mundo da vida. Nesse mundo da vida, elementos podem ser identificados e entregues a discussão como elementos do apriorismo argumentativo. É daí que vem a tal da auto propriedade, que iremos usar lá na frente para compor a ética argumentativa. É justamente da formulação da concepção de um arcabouço universal comum que se dá o percebimento da auto propriedade.

Avançando. Temos então a difícil missão habermasiana de em uma só tacada, não apenas amparar-se em Apel para fazer uma ética que entregasse normatividade, mas faze-la universal e permanente. Para isso, Habermas precisou pensar e refletir sobre os elementos essenciais das éticas que já existiam, como a ética kantiana per si. Ele percebeu que uma proposição para ser ética precisava possuir, validade, verdade e legitimidade. Dessa legitimidade, temos o remover completo da análise indutiva e dedutiva, eis que a percepção moral por ser subjetiva, não poderia resultar em uma proposição legitima, eis que diversa para cada interlocutor, ou seja, dependendo daquele que está fazendo a dedução/indução, chegaríamos em proposições diversas. Ele define então que uma proposição só pode ser legitima se for universal.

Sobre o artigo do Nicholas Ferreira (Breves comentários sobre a Ética Argumentativa Hoppeana).

“Uma vez que o reconhecimento mútuo do direito de controle exclusivo sobre o próprio corpo é uma condição praxeológica necessária para a atividade argumentativa, esta defesa da ética seria transcendental, já que para negá-la, seria necessário assumi-la como correta, o que seria contraditório, como afirmar que se está morto (é necessário pressupor que se está vivo para afirmar que se está morto, uma vez que se fosse assumido estar morto, o indivíduo sequer agiria). “

Não entrarei no mérito da questão sobre esse reconhecimento do direito ser ou não ser um requisito para a ação argumentativa, pois este não é o ponto, no momento. Assumirei que sim, tal reconhecimento é conditio sine qua non da atividade argumentativa, para os devidos fins. Isto é, é condição constitutiva da ação argumentativa o reconhecimento, por todas as partes participantes na argumentação, da norma segundo a qual os indivíduos têm o direito de controle exclusivo sobre os próprios corpos, ou seja, o direito de decisão última sobre os recursos escassos usados primariamente para proporem suas ideias na argumentação.

No entanto, até agora só podemos concluir exatamente o que foi dito e nada mais: que o reconhecimento de uma tal norma é condição necessária para a atividade argumentativa. Disso não se segue, porém, que tal norma é, de fato, válida. Quero dizer, verificar que é praxeologicamente necessário pressupor uma determinada norma como válida (isto é, como correta, verdadeira, legítima, deontologicamente justa) para realizar a ação argumentativa não é suficiente nem necessário para concluir que tal norma é, de fato, válida”.

Agora que eu já estou com o conteúdo apelliano e habermasiano evidente aqui para todos, temos claro que enxergar algo como parte do a priori argumentativo não existe apenas para prova-lo, mas para derivar daí normatividade. Nós temos que validade, verdade e legitimidade são os elementos nos quais se amparará qualquer ética que se pressupor verdade. Temos que o a priori argumentativo encerra normas a partir do momento em que possui corpo demonstrativo.

Para Apel, a partir do momento em que você reduzia as proposições a um mínimo comunicativo e compunha o a priori argumentativo, era impossível debater contra isso. Ou seja, temos o elemento validade da qual advém a formalidade.

Para Habermas, a partir do momento em que estão contidos todos os pressupostos de validação ética do a priori argumentativo para proposições morais. O primeiro deles, já lidamos. É o principio U, que diz que para um determinado método possuir validade, ele precisa obrigatoriamente possuir universalidade. O segundo deles, é o principio D, segundo o qual:

“Mas, se as argumentações morais devem produzir um acordo desse gênero, não basta que um indivíduo reflita se poderia dar seu assentimento a uma norma. Não basta nem mesmo que todos os indivíduos, cada um por si, levem a cabo essa reflexão, para então registrar os seus votos. O que é preciso é, antes, uma argumentação “real”, da qual participem cooperativamente os concernidos. Só um processo de entendimento mútuo intersubjetivo pode levar a um acordo que é de natureza reflexiva; só então os participantes podem saber que eles chegaram a uma convicção comum”.

Vemos daqui que ele coloca um princípio D universal, no qual todos os seres contidos no debate são partes obrigatórias. Agora então, podemos ir até Hoppe e entender que o que ele queria fazendo o reconhecimento da auto propriedade é eleva-la como elemento do discurso ideal.

Não se trata de como dito, apenas um requisito formal para a argumentação per si, mas para o a priori argumentativo que dá origem ao discurso ideal, no qual as proposições éticas podem ser feitas.

“Tenho total ciência de que não se pode argumentar contra a validade da norma sem entrar numa contradição performativa, porém, tal contradição demonstra apenas uma incompatibilidade entre o que está sendo proposto e uma preferência subjetiva, contingente, do sujeito argumentador. Nada disso tem a ver com o valor verdade do que está sendo proposto, o que demonstrarei na formalização abaixo. “

É basicamente como se o artigo olhasse para os vácuos da ética argumentativa que são respondidos por Apel e Habermas e dissesse; Hoppe, você está dizendo que isso é isso. Mas por quê? Para o leitor atento, sabemos que quem cai em contradição performativa ignorou a comunidade comunicativa e nosso eu no mundo, não podendo fazer proposições válidas. E temos que obrigatoriamente para fazermos proposições válidas, você precisa estar pragmaticamente certo. Ou seja, temos que se você cai em contradição performativa, você está necessariamente eticamente incorreto. Agora, a função de Habermas é provar que ele está certo. Desde já, é necessário estabelecer que Hoppe coloca a auto propriedade no meio dessas duas situações, como elemento do discurso ideal, logo elemento da busca da verdade e torna outras teorias incapazes de rebater a ética argumentativa.

Retornando ao curso argumentativo em Habermas

Bem, continuemos em Habermas. Habermas tinha a tarefa de provar que mais do que estar fundamentalmente não errado, estava certo. Enxergamos até agora que: Para uma formulação ética, precisamos obrigatoriamente de uma dinâmica universalizável, temos também que é elemento necessário a participação obrigatória de todos os indivíduos que irão compor a normatividade, sobre pena de perca da legitimidade. Esses dois conceitos (atrelados a outros elementos e afins narrados na ação comunicativa) se unem para formar o tal do local ideal de fala ou discurso ideal. Já sabemos que esses dois elementos irão dar origem a um discurso ideal de fala necessário para proposições éticas, mas agora vamos além e falamos das justificações habermasianas, ou seja, sabemos dos requisitos mínimos entre os indivíduos, mas também uma análise do teor das justificações.

A primeira coisa que devemos enxergar é a diferença essencial entre o agir estratégico e o agir comunicativo. Textualmente em Habermas:

“O conceito da ação comunicativa alude a um tipo de ação (social) mediada pela comunicação. A linguagem é o meio de comunicação que serve ao entendimento. Porém, os atores, ao se entenderem entre si para coordenar suas ações, perseguem, cada um, uma determinada meta. De modo que não se trata primariamente de atos de comunicação, mas de um tipo de interação coordenada mediante atos de fala”

Enquanto o agir estratégico se trata da busca de fazer com que outra pessoa atue da forma que você considera adequada, ou seja, enquanto um deles é de todo kantiano, e está efetivamente tentando perpassar uma norma por cima do consenso, o agir comunicativo pressupõe consenso em busca de um alcançar comum.

Sendo assim, ele enumera uma série de enunciados argumentativos que podem ser utilizados como justificativo,na qual as éticas necessárias precisam se basear.

a) Enunciado descritivo: fundamentar aqui significa demonstrar a existência de estados de coisas;

b) Enunciado normativo: fundamentar significa demonstrar a aceitabilidade de normas de ação;

c) Enunciado valorativo ou avaliativo: fundamentação aqui consiste em demonstrar a preferibilidade de certos valores;

d) Enunciado expressivo: fundamentar significa aqui demonstrar a transparência na auto-apresentação;

e) Enunciado explicativo: fundamentação consiste aqui na demonstração de que as expressões simbólicas foram adequadamente geradas.

Essas são as possíveis justificações, que advém de críticas e discursos que sempre possuem implícito em si a racionalidade na elaboração. Ou seja, trocando em miúdos, o que temos aqui é que ao agir comunicativamente, imbuído de racionalidade e utilizar-se de fundamentação, com a finalidade de substituir a proposição atual tida como verdade por outra proposição, temos uma justificação, que vai seguir, por via de regra, algum dos nortes encontrados textualmente em Habermas.

Tudo isso só possível já no discurso ideal de fala. O problema desse discurso ideal é porque ele trata uma suposição e pode perfeitamente ser abandonado por alguém, não possuindo mensuração prática de análise.

Se trata de uma ética que ampara outras éticas, demonstrando quais são os requisitos e elementos básicos para a composição de uma ética válida, e demonstrando que respeitando todos esses elementos, estamos fazendo proposições éticas.

A Ética em Hoppe

Vamos usar esses 6 artigos, em diferentes níveis para entender o argumento Hoppeano e como ele se utiliza da normatividade do discurso ideal para efetivamente se prostrar como elemento ético possível.

  • · Por que é impossível argumentar contra a propriedade privada sem cair em autocontradição
  • A ética e a economia da propriedade privada
  • Ética Argumentativa: quatro objeções respondidas
  • A justificativa ética do capitalismo e por que o socialismo é moralmente indefensável
  • O dever transcendental: uma reformulação do argumento hoppeano
  • Novas Direções Racionalistas nas Teorias Libertárias do Direito

Essa é a explicação mais curta da ética argumentativa hoppeana que eu encontrei textualmente em Hoppe.

“Como Osterfeld corretamente percebe, eu dou uma prova praxeológica para a validade da ética da propriedade privada essencialmente lockeana. Mais precisamente, eu demonstro que apenas essa ética pode ser argumentativamente justificada porque ela é a pressuposição praxeológica da argumentação, e qualquer proposta ética divergente pode por isso mostrar-se estar violando a preferência demonstrada. Tal proposta pode ser levantada, mas seu conteúdo proposicional contradiria a ética pela qual se teria demonstrado uma preferência em virtude da própria ação de fazer uma afirmação, i.e., pelo ato de se engajar numa argumentação. Da mesma forma que alguém pode dizer “eu sou e sempre serei indiferente quanto a fazer coisas”, embora essa proposição contradiga o ato de fazer uma afirmação, o qual revela preferências subjetivas (dizer isso em vez de dizer outra coisa ou de não dizer nada), propostas éticas deturpadas são falseadas pela realidade de efetivamente propô-las.”

Prova praxeólogica da validade da ética da propriedade privada essencialmente lockeana. Isso é importantíssimo de se ter em mente. Novamente, da mesma forma que vimos em Habermas e Apel, temos que Hoppe não faz novas proposições, no sentido de criar por si só uma mensuração ética para a propriedade privada. Diferente disso, ele se apropria da ética de propriedade privada Lockeana e apenas dá a ela arcabouço dentro do a priori argumentativo para que ela se torne infalseável. A ética argumentativa não é então, por si só, uma nova ética da propriedade privada, mas uma demonstração praxeológica dentro do a priori argumentativo de uma ética já existente.

“Primeiro, a questão do que é justo ou injusto (ou do que é válido ou não) apenas surge na medida em que eu e os outros somos capazes de realizar trocas de proposições — de argumentar. A questão não surge para uma pedra ou um peixe, porque eles são incapazes de produzir proposições com reivindicação de validade. Mas se é assim — e não se pode negá-lo sem se contradizer, pois não se pode argumentar que não se pode argumentar -, então qualquer proposta ética, de fato qualquer proposição, deve ser assumida como reivindicando que pode ser validada por meios argumentativos e proposicionais.

Ao produzir qualquer proposição, manifestamente ou como um pensamento interno, demonstra-se a própria preferência pela vontade de contar com meios argumentativos para convencer a si ou a outros de alguma coisa. Não existe, portanto, nenhuma maneira de justificar algo a não ser que seja uma justificação por meio de trocas proposicionais e argumentos. Deve-se considerar a derrota final de uma proposta ética se se puder demonstrar que seu conteúdo é logicamente incompatível com a reivindicação do proponente de que sua validade pode ser verificada por meios argumentativos. Demonstrar tal incompatibilidade equivaleria a uma prova de impossibilidade, e essa prova é letal no campo da investigação intelectual.”

Aqui, Hoppe trata da necessidade do à priori argumentativo como mecanismo para a formulação de proposições éticas que resolvem conflitos entre recursos escassos. Ele analisa devidamente que toda e qualquer proposição ética terá o caráter de justificação contido nas proposições do local ideal de fala Habermasiano. E demonstra então que é impossível argumentar contra essa proposição, sob pena de estar desrespeitando o a priori argumentativo do qual se está fazendo uso.

Para aqueles que acompanharam até aqui, temos a “pretensão de validade” conceito habermasiano como o conceito que nos demonstra que a justificação a qual se refere Hoppe é realmente a Justificação Habermasiana. Temos aqui então que o conceito validade usado acima é o elemento chave para a análise hoppeana. Ele está dizendo que se você busca VALIDADE (e não verdade, como muitos críticos apontam), você precisa obrigatoriamente recorrer ao a priori argumentativo do qual não pode argumentar contra sem cair em contradição. Isso precisa ficar muito claro, tendo em vista que muitos apontam a possibilidade da criação de proposições com valor verdade em situações de monólogo e afins, quando na verdade, estamos tratando de proposições com Verdade e Validade que se refere a proposições com valor verdade e consideração da comunidade comunicativa.

“Segundo, os meios pelos quais uma pessoa demonstra preferência ao engajar-se numa argumentação são os de propriedade privada. Obviamente, ninguém poderia propor nada ou ser convencido de qualquer proposição por meios argumentativos se o direito de uma pessoa ao uso exclusivo de seu corpo físico não fosse pressuposto. “

Além disso, seria igualmente impossível sustentar a argumentação e contar com a força proposicional do argumento se não fosse permitido apropriar outros bens escassos por meio de apropriação original, colocando-os em uso antes que alguém o fizesse, ou se tais bens e o direito de controle exclusivo relativo a eles não fosses definidos em termos físicos objetivos. Se tal direito não fosse pressuposto, ou se retardatários tivessem reivindicações legítimas sobre coisas, ou se coisas apropriadas fossem definidas em termos avaliativos subjetivos, ninguém poderia sobreviver enquanto uma unidade fisicamente independente de tomada de decisão; por isso, ninguém poderia jamais levantar qualquer proposição com reivindicação de validade.

Assim, ao se estar vivo e formular proposições, demonstra-se que qualquer ética é inválida, a não ser essa da propriedade privada.”

Hoppe ainda expande textualmente:

“A estrutura do meu argumento é esta: (a) uma justificação é proposicional ou argumentativa (afirmação factual verdadeira a priori); (b) a argumentação pressupõe o reconhecimento da ética da propriedade privada (afirmação factual verdadeira a priori); © nenhum desvio de uma ética da propriedade privada pode ser justificada argumentativamente (afirmação factual verdadeira a priori).”

No trecho, ele expõe duas coisas que são úteis para a presente análise. Uma delas é extraída do Lebenswelt, que é o fato de que é impossível não reconhecer a si mesmo como elemento do mundo da vida e patrono do direito de uso exclusivo do corpo, portanto proponente válido do Lebenswelt. Ou seja, o indivíduo precisa ser pressuposto como um outro dono de si e dono dos elementos físicos e cognitivos necessários para a formulação da proposição para que haja efetiva possibilidade de justificação. Sem isso, o entendimento não é possível, e sem entendimento temos a quebra do discurso ideal habermasiano!

Mas, mais do que isso, temos a impossibilidade de sequer transformar proposições em justificações, não podendo nem criar justificações sem escopo ético! Reparem que isso fica evidente quando ele fala em poder convencer, se tratando efetivamente do agir comunicativo já tratado acima! Sobre a estrutura da ética argumentativa, temos que ele não está tentando encerrar uma norma per si, mas antes demonstrar de forma descritiva e meta-ética que a única forma possível de ser ético é essencialmente a utilização da ética da propriedade privada, porque os elementos constitutivos da argumentação que cria justificação, exigem o respeito dos elementos éticos da ética da propriedade privada, e qualquer tentativa de falsear esse argumento obrigatoriamente cairá em contradição performativa.

Aqui cabe acrescentar algo. Quando se fala de: Justificação, Habermas; Pressupostos do a priori argumentativo, Apel; Ética da propriedade privada, Locke; Infalseabilidade da contradição por estar usando o próprio elemento da qual se valerá para contra-argumentar, Mises.

Ética da Propriedade Privada e a Apropriação por Homestead

A primeira coisa que precisa ficar evidente, é que a ética da propriedade privada parte de um critério lockeano de propriedade que existe no famigerado estado de natureza lockeano. Vamos falar sobre esses dois critérios lockeanos dos quais Hoppe possui muito apreço. Estado de natureza e o Homestead.

Textualmente, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, temos Locke:

Um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade. Um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um soberano.

E também:

“O “estado de Natureza” é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens; todos os homens são obra de um único Criador todo-poderoso e infinitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano, enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua propriedade, daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém.

Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em uma única comunidade da natureza, não se pode conceber que exista entre nós uma “hierarquia” que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas.”

E ainda, aqui já expondo o estado de guerra:

“E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, que, embora alguns homens confundam, são tão distintos um do outro quanto um estado de paz, boa-vontade, assistência mútua e preservação, de um estado de inimizade, maldade, violência e destruição mútua. Homens vivendo juntos segundo a razão, sem um superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles, eis efetivamente o estado de natureza. Mas a força, ou uma intenção declarada de força, sobre a pessoa de outro, onde não há superior comum na terra para chamar por socorro, é estado de guerra; e é a inexistência de um recurso deste gênero que dá ao homem o direito de guerra ao agressor, mesmo que ele viva em sociedade e se trate de um concidadão.

Assim, este ladrão, a quem não posso fazer nenhum mal, exceto apelar para a lei, se ele me roubar tudo o que possuo, seja meu cavalo ou meu casaco, eu posso matá-lo para me defender quando ele me ataca à mão armada; porque a lei, estabelecida para garantir minha preservação contra os atos de violência, quando não pode agir de imediato para proteger minha vida, cuja perda é irreparável, me dá o direito de me defender e assim o direito de guerra, ou seja, a liberdade de matar o agressor; porque este não me deixa tempo para apelar para nosso juiz comum e torna impossível qualquer decisão que permita uma solução legal para remediar um caso em que o mal pode ser irreparável.

A vontade de se ter um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza; o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra, haja ou não um juiz comum.”

Seus fundamentos são essencialmente esses:

“O mesmo convite da natureza levou os homens a reconhecer seu dever, tanto no amor ao próximo quanto no amor a si mesmo, pois deve ser aplicada uma medida comum a todas as coisas iguais. Se não posso me impedir de desejar que me façam o bem, se espero mesmo que todos ajam assim para comigo na medida dos desejos mais exigentes que um homem possa formular para si mesmo, como pretenderia obter satisfação, ainda que em parte, sem buscar por meu lado tentar satisfazer nos outros o mesmo desejo, por que eles compartilham sem dúvida da mesma fraqueza e da mesma natureza?

Tudo o que lhes fosse oferecido desprezando este desejo forçosamente iria feri-los tanto quanto a mim. Portanto, se pratico o mal, devo esperar sofrer, pois os outros não têm motivo para me dedicar um amor maior que aquele que lhes demonstro. Meu desejo de ser amado em toda a dimensão do possível por meus iguais naturais me impõe a obrigação natural de lhes dedicar plenamente a mesma afeição. Ninguém ignora os diferentes preceitos e cânones para a direção da vida, que a razão natural extraiu desta relação de igualdade que existe entre nós mesmos e aqueles que são como nós” (Eccl. Pol., liv. 1).

Trazendo para nossa compreensão contemporânea, o Homem, ao perceber que suas ações vão inevitavelmente interferir na forma como ele é tratado, optará por fazer o melhor de si no que tange ao esforço pelo entendimento e por ações que vão em busca do consenso. Ele o fará porque mundano e sujeito a ações de outrem, ele entende racionalmente, que se definir como inimigo do mundo, faria o mundo ser seu inimigo.

Essa ação é, para Locke, intrinsecamente humana. Falando aqui de lógica, nós temos que isso faz um sentido impressionante! Veja bem, se somos todos da classe Homem e todas as ações que viermos a fazer podem vir a ser feitas potencialmente sobre as mesmas condições por qualquer um da mesma classe, dado que no lidar humano temos necessariamente um intercâmbio necessário de ações, agir de forma a maximizar a reciprocidade da forma mais pacífica possível é de todo racional.

Ética da propriedade em Locke e o Homestead

Bem, se o mundo possui algo tal qual uma lei natural que compele os indivíduos a respeitarem uns aos outros na busca de um quantum moral que possa efetivamente estetizar a conduta humana, isso levanta uma dúvida logicamente orientada: Como deve se dar essa conduta? Bem, para Locke, essa conduta se dá através da análise do que é passível de ser propriedade e não é. Para Locke, somos todos donos de nós mesmos! Ou seja, para pensar na conduta humana, precisamos nos definir como limites naturais para qualquer possibilidade de apropriação e trato, eis que definida como relação intersubjetiva necessária!

O próprio refletir da conduta humana se dá a partir do momento em que analisamos a nós mesmos como agentes do mundo e diferenciamos sujeitos e objetos, dando a eles categorias diferentes de análise e passamos a querer (lembrando-se que essa análise se utiliza do aspecto jusnaturalista teológico) estar em efetiva comunhão para com o próximo! Qualquer conduta humana que desconheça de o próximo como ser em todo igual a nós mesmos (aqui em oposição a um ferrenho absolutismo que reinava à época) é de toda vazia no compreender ético humano.

E ele vai, ainda mais profundamente, dizer que a análise do querer da conservação humana que é tratada extensivamente em seu primeiro tratado é transportada aqui para o seu primeiro escopo de análise social! Reconhecemos nossa necessidade, reconhecemos que a necessidade alheia pode nos afetar e reconhecemos que senão formos justo limite dessa necessidade, não será possível nem sequer pensar numa ordem social! Ou seja, a vontade de uma ordem universal de conduta humana perpassa por sobre o enxergar dessa condição.

Lembrando que aqui, não é possível não pensar que ele está dando duas definições do mesmo conceito! Um que parte de uma vontade de comunhão com aspectos teológicos, e outro que passa pelo eterno querer de ação humana cognoscível.

“Cada homem tem uma ‘propriedade’ em sua própria ‘pessoa’; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo”

E ainda:

“Embora eu tenha dito anteriormente (Capítulo II) que, por natureza, todos os homens são iguais, não se pode supor que eu me referisse a todos os tipos de igualdade. A idade ou a virtude podem dar aos homens uma precedência justa. A excelência dos talentos e dos méritos pode colocar alguns acima do nível comum. O nascimento pode sujeitar alguns, e a aliança ou os benefícios podem sujeitar outros, reconhecendo-se aqueles a quem a natureza, a gratidão ou outros aspectos possam obrigar. E, no entanto, tudo isso coincide com a igualdade de todos os homens com respeito à jurisdição ou ao domínio de um sobre o outro, ou seja, a igualdade que apresentei como característica disso que se está tratando e que consiste, para cada homem, em ser igualmente o senhor de sua liberdade natural, sem depender da vontade nem da autoridade de outro homem.

Avançando então para a última questão lockeana que terá valor em Hoppe. Se todos somos seres legítimos, senhores de nós, tão legítimos quanto quaisquer outros e tão subordinados às leis quanto quaisquer outros, como poderemos então definir objetivamente qual a forma de domínio legítima sobre aquilo que é passível de ser apropriado?

Bem, para isso, refletimos que a análise possível aqui obrigatoriamente não poderá exigir de todos os homens que sinalizem vossas opiniões, ainda que legítimas! E isso se deve a uma impossibilidade física. Portanto, devemos pensar então numa forma que possa ser vista por todos aqueles que de fato estão conflitando sobre o bem e não uma forma universal, mas que, ao mesmo tempo, continue válida caso novos agentes surjam nessa equação.

Para isso, a resposta lockeana foi a de que o próprio objeto poderia entregar através dos seus resultados aferidos, que ele pertence a alguém. Nesse sentido, ele define que ao misturar o seu trabalho ao objeto, criando um elo objetivo no enxergar humano, ele passaria a lhe pertencer, a ser a sua propriedade, desde que esse elo fosse mantido visível e perceptível pela comunidade. Hoppe vai além e diz que para sua propriedade lhe pertencer, você deve usar, delimitar e defender a mesma.

Assim, está definida a lei de Homestead, a lei que define de que forma objetos podem ser apropriados de forma legítima. Muitos aplicam o conceito de primeiro uso aqui, inclusive está presente textualmente em Hoppe. Eu o descarto da explicação porque ele entra em análises mais profundas sobre como um determinado objeto pode deixar de ser propriedade de alguém e quais formas de apropriação são consideradas ilegítimas.

A lei de propriedade então é a lei que define quem pode e de que forma pode adquirir propriedade. Numa forma mais concisa. “Sou autoproprietário e tudo aquilo que eu usar, delimitar e defender será legitimamente meu. Nem mais, nem menos.”

Lacombi faz em seu artigo “A ética argumentativa”, uma exposição do porquê para aquele que chegou até aqui, existe validade sistemática do proposto nos seguintes termos:

“A fim de demonstrar essa afirmação, pode-se proceder por absurdo [7]. A negação do princípio do elo original significa dar o direito de apropriação por via indireta que necessariamente passa por uma declaração verbal. Contudo, não se pode permitir que um indivíduo reivindique propriedades via declarações sem entrar em contradição com a auto propriedade, pois isto implicaria na possibilidade de reivindicar corpos de terceiros. Claramente isso envolve uma contradição prática pois ninguém pode entrar no curso de defesa de uma tal declaração sem simultaneamente reivindicar o controle exclusivo do próprio corpo. Mais ainda pode ser dito: a separação entre “meu e seu” não se baseia em declarações verbais, mas na ação objetiva. A observação se baseia em algum determinado recurso escasso que foi transformado em uma expressão ou materialização da vontade própria do indivíduo, de modo que qualquer um possa ver e verificar, pois existem indicadores objetivos para tal”. Ou seja, ao negar o Homestead, também caímos em contradição.

A Praxeologia e os Fundamentos Praxeológicos da Ética

Os conceitos de ação, escassez, meios e fins desempenham um papel fundamental na argumentação de Hoppe, por fundamentar sua teoria dos conflitos, mas também por constituírem a base conceitual utilizada por ele; quando Hoppe fala de meios, controle ou qualquer outro termo, ele utiliza o termo praxeológico.

Por isso entender corretamente os axiomas da ação humana é essencial para se compreender o argumento de Hoppe. Ação não deve ser confundida com comportamento. Muitas pessoas entendem errado a Praxeologia por não entender o que é ação. O comportamento pode ser entendido como a passagem de um ser vivo de uma situação ou estado para outro — por exemplo, você pisca, passou do estado no qual não havia piscando para o estado no qual havia. Porém, isto não é ação. Não é a isso que Mises, Hoppe, Rothbard e outros prexeologistas se referem com o termo ação, pois nem todo o comportamento é ação.

· Ação é a manifestação da vontade

Ação é a manifestação da vontade, esta é a definição dada ao termo por Mises em seu livro Ação Humana. Ação envolve sempre decisão, num processo de manifestação da vontade o agente sempre decide entre determinadas opções.

· Fins

Toda a ação busca algum fim, ou objetivo. Tanto a afirmação de que humanos agem, quanto a afirmação de que humanos agem buscando fins não podem ser contestadas sem que se caia numa contradição performativa (uma contradição entre aquilo que é dito, e aquilo que deve ser pressuposto para se dizer algo, numa contradição performativa duas verdades contraditórias são assumidas, uma explicitamente com a fala, e outra implicitamente pelo ato da fala), pois qualquer pessoa que tente contestar estes dois axiomas estará agindo e buscando um fim, estará decidindo entre a opção, o fim, de contestar, e o de não contestar, ou seja, em sua própria ação estará reafirmando aquilo que nega; por isso é inegável que humanos agem, e que agem decidindo, ou escolhendo, entre diferentes fins disponíveis.

· Meios

Humanos não apenas agem buscando fins, mas agem usando meios, sendo um meio aquilo que é empregado para se atingir o fim, e o uso (ou controle) o emprego de um meio para atingir um fim. Mais uma vez esta afirmação não pode ser contestada sem que se caia numa contradição performativa, pois a pessoa que a contesta, para que possa contesta-la, deve usar meios, no mínimo o tempo é utilizado como meio, ou então o próprio cérebro, suas cordas vocais (caso esteja contestando-a ao se comunicar com outros), etc. É importante ressaltar que simples objetos no ambiente não são meios, não até serem usados. Um objeto só se torna meio a partir do momento no qual ele é empregado para se atingir algum fim.

· Valores

Valor é a importância que o agente atribui ao fim, assim valores são sempre relacionados a fins. Sempre que uma pessoa escolhe entre um fim ou outro, é porque atribui a ele mais importância, ou seja, para ele aquele fim tem mais valor.

Quando uma pessoa se defronta com uma escolha entre determinados possíveis fins, ela age segundo uma escala de valores. Todos os possíveis fins da situação são hierarquizados segundo sua importância para o agente, esta é a escala de valores.

Estes conceitos são mais bem explicados por Mises em seu livro Ação Humana, mais especificamente no capítulo IV. E um bom texto para se introduzir à Praxeologia é este: Introdução à Praxeologia e Economia em Rothbard do Ludwig von Pinochet.

Hoppe fundamenta sua afirmação de que normas devem resolver e evitar conflitos nos axiomas da ação humana, e a partir deles constrói conceitos como o de propriedade, e auto propriedade.

Retomando as definições dos termos praxeológicos antes de entrar nesta parte da dedução:

  • O fim é aquilo que é buscado na ação;
  • Valor é a importância atribuída ao fim;
  • Meio é aquilo empregado para se alcançar o fim;
  • Controle, ou uso, é o emprego de um meio para se alcançar um fim.

Sem estas definições em mente a, interpretação da Ética Argumentativa Hoppeana pode ocorrer de forma incorreta.

Conflitos são definidos como quando duas ou mais pessoas desejam usar um mesmo meio para fins conflitantes (ou seja, que não podem ser ambos buscados). Por exemplo: suponha que uma pessoa queira usar uma maçã inteira para fazer uma torta, e a outra queira usar a mesma maçã inteira para fazer um suco (no exemplo apenas o uso da maçã inteira tornaria possível fazer as duas receitas). Qualquer norma (no sentido de lei, uma norma que todos devem ser obrigados a seguir) deve resolver e evitar conflitos. Resolver um conflito é dizer qual das pessoas tem o direito de usar o meio quando surge o conflito, e evitar conflitos é quando uma norma, caso seja seguida por todos, não leva a conflito algum.

“Para desenvolver o conceito de propriedade é necessário que os bens sejam escassos, de modo que seja possível surgir conflitos sobre o uso desses bens. É função dos direitos de propriedade evitar esses possíveis conflitos sobre o uso dos recursos escassos através da atribuição de direitos de propriedade exclusiva. A propriedade é, dessa forma, um conceito normativo, concebido para tornar possível uma interação livre de conflitos pela estipulação de regras de conduta (normas) mútuas e vinculativas em relação aos recursos escassos. Não é preciso observar muito para verificar que há, na verdade, uma escassez de bens, de todos os tipos de bens, em qualquer lugar, e assim se torna evidente a necessidade dos direitos de propriedade.” (Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, capítulo 2)

“Sozinho em sua ilha, Robinson Crusoé pode fazer o que bem quiser. Para ele, o problema relativo às regras que norteiam uma conduta humana ordeira — isto é, a cooperação social — simplesmente não existe. Naturalmente, esse problema só passará a existir quando uma segunda pessoa, Sexta-Feira, surgir na ilha. Entretanto, ainda assim, esse problema vai continuar irrelevante enquanto não houver algum tipo de escassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden; todos os bens externos estão disponíveis em superabundância.

Eles são chamados de “bens não escassos” ou “bens abundantes”, da mesma forma que o ar que respiramos é um bem “não escasso”. O que quer que Crusoé faça com esses bens, suas ações não terão quaisquer repercussões em relação à oferta presente e futura desses bens tanto para ele próprio quanto para Sexta-Feira (e vice-versa). Assim, é impossível que algum dia possa haver um conflito entre Crusoé e Sexta-Feira concernente ao uso desses bens. Um conflito só é possível se os bens forem escassos. Somente nesse cenário é que surgirá a necessidade de se formular regras que tornem possível uma cooperação social ordeira — ou seja, livre de conflitos.” (A Ética e Economia da Propriedade Privada)

Estes trechos dos trabalhos de Hoppe nos esclarecem um pouco mais sobre sua teoria. Para Hoppe qualquer norma irá necessariamente tentar resolver conflitos, e, por consequência, qualquer norma deverá estabelecer direitos de propriedade sobre meios (recursos/bens).

A dedução funciona da seguinte forma: se não houvesse conflitos, não haveria a necessidade de se criar ou propor norma alguma, e com “não haveria a necessidade” não quero dizer que não seria preciso fazer, mas que alguém ainda poderia, muito pelo contrário, sem a existência de conflitos nenhuma pessoa jamais proporia ou criaria norma alguma. Isso acontece pelo fato de que sem a existência de conflitos seriamos capazes de atingir todos os nossos fins independentemente do que qualquer outra pessoa fizesse, o que tornaria a criação de qualquer norma completamente irrelevante.

Imagine o seguinte cenário para ilustrar isto:

Todos os humanos são onipotentes. Com um cenário destes a existência de qualquer norma seria completamente irrelevante, qualquer ação sua atingiria seu fim sem influenciar na vida de ninguém.

Mas este cenário não existe. Conforme a Praxeologia demonstra, todos os meios são escassos, ou seja, não podem ser utilizados para se alcançar todos os nossos fins; se não fossem, não agiríamos, pois teríamos todos os nossos fins já satisfeitos. Como meios são escassos, eles não podem ser utilizados por mais de uma pessoa para fins conflitantes, ou seja, que impedem um ao outro. Daí a origem dos conflitos, e a origem do fato de normas resolverem conflitos, ou seja, dizerem qual das pessoas tem o direito de usar o meio quando surge o conflito.

Se normas resolvem conflitos, elas devem estabelecer quem tem o direito de usar/controlar o meio, mas não apenas isso, devem estabelecer quem tem o direito de uso exclusivo do meio, caso o contrário, caso o uso não fosse exclusivo, duas pessoas poderiam controlar o mesmo meio para fins conflitantes (pois o uso de uma não excluiria o da outra), o que não seria possível, pois seria uma contradição. Daí Hoppe deduz que todas as normas necessariamente estabelecem direitos de propriedade.

Uma norma que defenda os impostos, por exemplo, ela estabelece que você tem o direito de propriedade sobre X quantia de dinheiro, até o dia do pagamento dos impostos, quando o estado passa a ter este direito. Lembrando que o “uso” (ou “controle”) presente no conceito de propriedade é o conceito praxeológico de uso, ou seja, empregar o meio para alcançar um fim.

Um espantalho comum contra a Ética Argumentativa é dizer que a auto propriedade não pode ser um direito pois ela seria supostamente inviolável, já que, segundo estas pessoas, apenas você teria o controle direto e interno de seu corpo, e, como ninguém além de você poderia ter este controle, violar seu direito seria impossível. Esse espantalho é claramente fruto de não estudar a Praxeologia.

O controle envolvido no direito de propriedade, incluindo o de auto propriedade, não é definido como “controle interno e direto” e sim como “empregar o meio para atingir um fim”. Se ele ocorrer interno, externo, direto ou indireto não importa, pois segundo o direito de auto propriedade, ninguém tem o direito de empregar seu corpo para atingir um fim conflitante com o seu (o que é perfeitamente possível, exemplo simples que costumo usar: um canibal poderia arrancar o cérebro de alguém e comer, ou seja, usar o meio para atingir o fim “saciar apetite”).

Mas o direito de propriedade deve também ser definitivo.

“O primeiro proprietário não pode ter entrado em conflito com ninguém ao se apropriar do bem em questão, já que todos os outros apareceram apenas depois. E qualquer um que venha depois pode tomar posse do bem em questão apenas com o consentimento do primeiro proprietário, ou se o primeiro proprietário voluntariamente transferiu sua propriedade para ele, neste caso e a partir deste momento ele se torna seu dono exclusivo, ou então se o primeiro usuário garantiu a ele algum direito de uso condicional sobre sua propriedade, neste caso ele não se torna o dono, mas seu possessor. Argumentar contra isso e dizer que um último usuário do bem, independentemente e contra a vontade do primeiro proprietário deveria ser o dono do bem consiste numa contradição performativa, pois isto levaria à conflitos eternos, e não à paz, sendo contrário ao próprio objetivo da argumentação”.

Tradução feita de um trecho da seguinte palestra: Hans Hermann Hoppe — Ethics of Argumentation

Ou seja, a propriedade deve também ser definitiva, caso o contrário a norma não está evitando conflitos, e sim levando a mais. E toda a norma deve evitar conflitos, deve existir de tal forma que caso seja seguida por todos não leve a conflito algum, pois é o dever de uma norma revolver os conflitos, entrando em contradição interna caso leve a mais.

Um exemplo para ilustrar: imagine que uma pessoa entalhe uma estátua de madeira e deixe-a em sua prateleira, dando a ela o fim “decoração”. Mesmo após deixar de controlar a estátua fisicamente, a pessoa ainda está usando-a, pois está empregando-a para atingir um fim (decoração). Se outra pessoa usar a estátua — por exemplo, tomando ela e usando para aquecer uma lareira — , o fim destinado ao meio de decoração entrará em conflito com o fim selecionado pelo segundo agente.

Apenas um dos dois poderá ser alcançado, mas uma norma que permita algo assim estará, na realidade, dizendo que a pessoa 1 pode usar a estátua para decoração e que, ao mesmo tempo, a pessoa 2 pode usar a estátua para aquecimento, o que é contraditório, e logo esta norma não será logicamente defensável, pois estará dizendo que ambos podem atingir seus fins com este meios, levando a mais conflitos, e não evitando-os.

Meios apropriados pelo seu primeiro proprietário podem ser empregados para qualquer fim, estocagem, economia, decoração… a questão é que eles estão sendo empregados e, consequentemente usados/controlados, caso o contrário a pessoa não questionaria caso outra tentasse usar o meio, pois não haveriam conflitos de fins. Assim conclui-se que qualquer norma deva estabelecer direitos de propriedade definitivos. A norma do exemplo anterior, a do imposto, por exemplo, seria logicamente indefensável, pois estabeleceria um direito de uso do dinheiro não definitivo para a pessoa.

Mas como então estabelecemos a quais meios cada pessoa tem direito de uso exclusivo e definitivo? E a resposta é, conforme foi elucidado anteriormente por Daniel Morais, auto propriedade e homesteading (primeiro uso).

Toda a ação usa meios, e existe um meio primário para a ação: mesmo que você não use nenhum meio externo, pelo menos este é usado, ele é chamado de corpo, praxeologicamente falando. Qualquer pessoa, para que possa agir, decidir, ou decidir se concorda ou não com um argumento de forma autônoma, utiliza pelo menos este meio. Consequentemente, qualquer uso deste meio (corpo) por outra pessoa contra a sua vontade, a impede de argumentar, pois um mesmo meio não pode ser usado por mais de uma pessoa para fins conflitantes.

Por isso a argumentação é apenas possível com o respeito mútuo dos envolvidos ao direito de propriedade dos outros sobre seus corpos, a auto propriedade, pois caso violassem este direito, controlando o corpo do outro, impediriam a argumentação. Daí vem o fato de todas as pessoas numa argumentação fazerem a pressuposição da validade do direito de auto propriedade, não podendo argumentar contra ele sem que caiam numa contradição performativa, e é daí que vem a influência da Praxeologia na fundamentação do direito de auto propriedade.

Lembrando que auto propriedade e controle do corpo são coisas diferentes. A auto propriedade é um direito, que exclui os outros do direito de controlar seu corpo contra sua vontade, algo diferente do simples controle do corpo, que ocorre e existe naturalmente.

Mas, seres humanos precisam também controlar outros meios do ambiente para que possam sobreviver, e a partir do momento no qual se apropriam de um destes meios usando-o pela primeira vez — ou seja, empregando-o para algum fim antes de qualquer outra pessoa, fazendo o homesteading — ou recebendo o título de propriedade dele de outra pessoa — em ambos os casos criando o elo objetivo com o meio, eles devem ganhar direito de propriedade, que conforme foi demonstrado anteriormente, deve ser definitivo.

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