A Pragmática e os Fundamentos Pragmáticos da Ética

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A filosofia pragmática (que busca identificar as regras que regulam a relação do orador com suas próprias expressões) de Apel e Habermas consiste, junto com a Praxeologia, em uma das principais bases nas quais a Ética Argumentativa se apoia e inspira, e sem a qual ela não poderia existir.

Assim, o objetivo do presente texto é o de apresentar os aspectos desta filosofia (principalmente da Ética do Discurso de Habermas) importantes à Ética Argumentativa, assim como de explicar como eles são utilizados no argumento hoppeano.

O Argumento por Contradição Performativa

Desde os primórdios da humanidade filósofos têm buscado por um princípio, um pilar básico no qual todas as ideias pudessem se sustentar com estabilidade e levar a humanidade à elevação, porém este princípio foi sempre debatido, questionado e até mesmo negado.

Uma das linhas atuais na filosofia afirma que não há princípio algum, e que, consequentemente, tudo pode ser falso e nunca teremos certeza absoluta de nada. Conforme aponta Hoppe, e também seu professor Apel, tal linha refuta a si mesma, já que sua própria reivindicação é negada quando aplicada a si mesma.

A linha pragmática de filósofos como Apel, Habermas e Hoppe busca centrar este princípio na argumentação, e encontrar nela as bases para se chegar às conclusões válidas.

Hans Hermann Hoppe em sua palestra na PFS 2016 explica a ideia muito bem ao demonstrar que todas as reivindicações de verdade, até mesmo a de que não há certeza sobre a verdade, devem ser feitas no curso de uma argumentação.

Uma proposta para a resolução deste problema que vem desde Aristóteles é a técnica da reafirmação através da negação, basicamente, a ideia de que determinadas premissas devem ser utilizadas como base por não poderem ser negadas sem serem assumidas e reafirmadas, sem que se caia numa contradição. Karl-Otto Apel aprofunda o conhecimento nesta técnica através do estudo da contradição performativa.

“Apel renova o modo da fundamentação transcendental com os meios fornecidos pela pragmática linguística. Ao fazer isso, utiliza o conceito de contradição performativa, que surge quando um ato de fala constatativo ‘Cp’ se baseia em pressuposições não-contingentes cujo conteúdo proposicional contradiz o enunciado asserido ‘p’. Partindo de uma reflexão de Hintikka, Apel ilustra o significado das contradições performativas para a compreensão de argumentos clássicos da filosofia da consciência com base no exemplo do ‘Cogito ergo sum’. Se exprimirmos o juízo de um oponente sobre a forma do ato de fala: ‘Duvido que eu exista’, o argumento de Descartes poderá ser reconstruído com a ajuda de uma contradição performativa. Para o enunciado:
(1) Eu não existo (aqui e agora)
o falante ergue uma pretensão de verdade; ao mesmo tempo, ao proferi-la, ele faz uam inevitável predisposição de existência cujo conteúdo proporcional pode ser expresso pelo enunciado:
(2) Eu existo (aqui e agora)
(sendo que, em ambas proposições, o pronome pessoal refere-se à mesma pessoa).” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.)

A contradição performativa se da quando a pessoa defende explicitamente uma proposição que se contradiz com uma que ela deve necessariamente pressupor como verdadeira para que possa sequer defendê-la. A ideia de Apel é que existem pressuposições como estas que são sempre assumidas implicitamente por uma pessoa ao argumentar, e que, portanto, não podem ser logicamente negadas.

Uma objeção comum contra estes princípios é a afirmação de que eles não podem ser provados de forma direta sem que se caia numa petição de princípio. Bom, mas isso é óbvio, porém de forma alguma os invalida, pois eles não são provados de forma direta, muito pelo contrário, são validados pelo argumento por contradição performativa, ou seja, temos aí uma demonstração por contradição. E isso já era de se esperar, afinal princípios como estes, ou axiomas, num framework mais aristotélico-objetivista, não podem se basear em outras premissas, pois eles devem ser as premissas primeiras.

A Situação Ideal de Discurso

Baseando-se no argumento pela contradição performativa de Apel e nas regras do discurso identificadas por Robert Alexy, Jürgen Habermas estabelece sua Ética do Discurso, através da qual pressuposições que não podem ser negadas sem que se caia numa contradição performativa são identificadas no ato de uma argumentação, e delas são extraídas os limites que estabelecem quais normas podem ser discursivamente defensáveis.

Primeiro, o conceito de justificação, em Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso Habermas define seu conceito de justificação como o de “dar razões para”, assim, justificar uma premissa seria dar razões para a sua validez. Podemos entender as justificações como sendo separadas em dois tipos, as monológicas e as argumentativas (chamadas de argumentações), sendo as primeiras (as justificações monológicas) aquelas nas quais há apenas o envolvimento de um indivíduo, enquanto as argumentações são intersubjetivas, ou seja, as justificações são feitas entre mais de um indivíduo (apenas nestas justificações normas podem ser logicamente defendidas, isso será mais bem abordado mais à frente).

Assim, em uma argumentação temos um proponente e um ou mais oponentes, sendo o proponente aquele que tenta justificar uma proposição e o oponente aquele que a ouve, tendo de decidir subjetivamente e de forma autônoma se concorda ou não com o argumento.

Além disso, toda a argumentação busca resolver um consenso perturbado, uma discordância, chegando a um novo consenso entre proponente e oponente.

Em uma argumentação existem determinadas regras pressupostas, pressuposições que não podem ser negadas sem que se caia numa contradição performativa:

1.1.: Nenhum falante pode se contradizer.

1.2.: Qualquer falante que aplicar um predicato a determinado objeto deve aplicar o mesmo predicato a todos os objetos que se assemelhem a ele em todos os aspectos relevantes.

1.3.: Diferentes falantes não podem utilizar uma mesma expressão em sentidos diferentes.

2.1.: Cada falante pode afirmar apenas aquilo que considera verdade.

2.2.: Quem atacar um enunciado ou norma que não for objeto da discussão deve indicar sua razão para fazer isso.

3.1.: Todo o sujeito capaz de agir e falar pode participar da argumentação.

3.2.a.: Todos podem problematizar qualquer asserção.

3.2.b.: Todos podem introduzir qualquer asserção ao discurso.

3.2.c.: Todos podem manifestar suas atitudes, desejos e vontades.

3.3.: Ninguém pode impedir um falante de exercer 3.1. e 3.2. por meio de coerção, seja dentro ou fora da argumentação.

Estas são as pressuposições de uma argumentação, elas são pressupostas no ato de se justificar argumentativamente proposições, pois são necessárias para a busca de um consenso e de uma verdade logicamente justificada.

Habermas atenta para o fato de estas regras não serem constitutivas, ou seja, elas não são regras que determinam a prática da argumentação factual, porém ainda assim são pressupostas por conta da natureza da argumentação, tentar justificar uma proposição argumentativamente é pressupor estas regras. Ele compara, para explicar por meio de uma analogia, estas regras com as do xadrez: suponha que eu esteja jogando xadrez e que eu ande em uma jogada 9 casas em diagonal com um cavalo, bom, neste caso não estarei mais jogando xadrez, pois no xadrez um cavalo não se move desta forma, essa é uma regra constitutiva, uma que não é possível de ser violada. Ao contrário das regras constitutivas, as identificadas por Habermas podem ser violadas, uma pessoa poderia tapar a boca de outro durante uma argumentação de três, por exemplo, ainda assim elas devem ser pressupostas, sua violação é possível, mas não pode ser defendida na argumentação sem que se caia na contradição performativa. Muitas pessoas criticam a Ética Argumentativa dizendo que a autopropriedade é uma regra constitutiva da argumentação e não uma pressuposição, estas pessoas não entenderam nada do argumento, e, conforme abordei num texto anterior, não entenderam o que é a autopropriedade por não terem se aprofundado na Praxeologia.

Assim, quanto mais uma argumentação segue estas regras, mais próxima ela está de uma situação ideal de discurso. Pode-se dizer que toda a pessoa que entra numa argumentação já pressupõe a situação ideal de discurso.

E é a partir destas regras que Habermas demonstra seu princípio da universalização, e que Hoppe demonstra as normas da Ética Argumentativa (no caso, a autopropriedade e a norma de se evitar conflitos) que levam à ética libertária.

Os Conflitos e a Universalização de Normas

Conforme foi abordado anteriormente (para mais informações veja A Praxeologia e os Fundamentos Praxeológicos da Ética), conflitos são definidos por Hoppe como quando duas ou mais pessoas desejam usar um mesmo recurso para fins conflitantes.

Sabemos pelos axiomas da ação humana que humanos agem e que sempre agem usando recursos (meios). Como todos os humanos agem usando meios se não houvessem conflitos não haveriam normas, conflitos ocorrem quando pessoas desejam usar um mesmo meio para fins conflitantes, logo, se não houvessem conflitos, todas as pessoas seriam capazes de atingir todos os fins desejados sem que a ação de terceiros tivesse qualquer influência em suas vidas e em suas ações e vontades. Logo, não haveria norma alguma, ninguém nem pensaria em propor qualquer norma, pois limitar as ações dos outros seria irrelevante para ele mesmo e para todos os demais.

Daí se deriva que normas servem para resolver conflitos, sem conflitos sem normas, estabelecer limites para a ação das pessoas é simplesmente uma forma de dizer quem tem o direito de usar cada meio a cada momento e, assim, resolver um conflito. E, consequentemente, se deduz que toda a norma deverá evitar conflitos (lembrando que uma norma evitar conflitos significa que se todas as pessoas a seguirem não ocorrerá conflito algum), pois caso ela não o faça ela não estará resolvendo conflitos.

Qualquer justificação é uma busca pela resolução de discordâncias ou incertezas, no caso de uma justificação sobre normas a discordância ou incertezas que se busca resolver é um conflito, pois normas servem para resolver conflitos, daí conclui-se que nenhuma norma pode ser justificada monologicamente, já que os envolvidos no conflito não seriam capazes nem mesmo de saber sobre a resolução se ela fosse justificada monologicamente.

É exatamente por isso que toda a justificação de normas deve ser feita no curso de uma argumentação. Isso já faz desabarem completamente todos os argumentos monológicos contra a Ética Argumentativa, aqueles que dizem que uma pessoa pode justificar normas apenas consigo mesma, afinal estes argumentos caem numa contradição performativa.

Um erro comum é não entender que “argumentação” é apenas uma justificação intersubjetiva de proposições, e não necessariamente um debate formal; existem os argumentos como o de Rian Lobato que afirmam que uma pessoa poderia justificar proposições normativas fora de um debate, como em panfletos; bom, se os panfletos estão sendo lidos por alguém há justificação intersubjetiva, então há argumentação, e se não estão então a justificação é monológica e por isso não é válida.

Como justificações sobre normas buscam resolver conflitos todos os possíveis participantes do conflito devem ser contemplados na justificação, caso contrário não há resolução do conflito, por isso mesmo que qualquer norma, para que possa ser justificada, deve valer para todos os possíveis participantes de um conflito, ou seja, deve ser universalizável.

Habermas explica isso muito bem:

“De acordo com a ética do Discurso, uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um Discurso prático, a um acordo quanto à validez desta norma.” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.)

E ainda há mais…

“Mas, quando se tem presente a função coordenadora das ações que as pretensões de validez normativas desempenham na prática comunicativa quotidiana, percebe-se porque os problemas que devem ser resolvidos em argumentações morais não podem ser superados monologicamente, mas exigem um esforço de cooperação. Ao entrar numa argumentação moral, os participantes prosseguem seu agir comunicativo numa atitude reflexiva com o objetivo de restaurar um consenso perturbado. As argumentações morais servem, pois, para dirimir consensualmente os conflitos da ação.” (HABERMAS, Jürgen. Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso.)

Assim, podemos ter certeza de que qualquer norma, para que possa ser lógicamente defensável, deve ser justificada no curso de uma argumentação, e deve valer para todos os possíveis participantes desa argumentação, todos os seres com capacidade de argumentar.

As Normas Identificadas por Hoppe

Hans-Hermann Hoppe, indo mais além ainda, também identificou normas implícitas na argumentação, e, a partir delas, determinou qual é a ética logicamente defensável, a ética baseada na autopropriedade e no homesteading, a ética libertária.

Uma destas normas é a de se evitar conflitos a partir de propriedades. Para que um conflito sobre um recurso seja realmente resolvido devem ser estabelecidos direitos de uso exclusivos e definitivos sobre ele, propriedade; pois, caso este direito de uso não seja exclusivo dois podem tentar usar este meio para seus fins conflitantes (pois o uso de um não excluirá o do outro), e, da mesma forma, caso ele não seja definitivo, os fins destinados ao recurso pelo primeiro usuário e pelo último usuário poderão entrar em conflito (um simples fim como “estocagem” ou “decoração” já entraria em conflito com o de um segundo apropriador).

A outra norma é a da autopropriedade, de que todos os indivíduos têm o direito de uso exclusivo e definitivo sobre seus próprios corpos. Isso se estabelece da seguinte forma: ações usam recursos, sempre, o recurso mínimo e primário a ser utilizado é chamado de corpo, logo, para que uma pessoa seja capaz de perceber um argumento e decidir de maneira autônoma se concorda com ele ou não ela deve usar este recurso, seu corpo, consequentemente qualquer uso deste recurso que entre em conflito com seus fins durante a argumentação a impedirá de atingir estes fins, de tomar sua decisão de forma autônoma. É por isso mesmo que o direito de autopropriedade está implícito na argumentação, ele é pressuposto nela, e portanto negá-lo é cair em contradição performativa.

E a partir disso é possível demostrar a validade do direito de homesteading. Humanos têm o direito de usar meios além de seus corpos que não sejam já propriedade de outro, caso não pudessem, para que fossem impedidos de fazê-lo, teriam de ser impedidos fisicamente, ou seja, seus corpos seriam violados e controlados, o que violaria o princípio da autopropriedade anteriormente estabelecido. E, tendo usado um recurso eles ganham o direito de propriedade sobre ele, pois qualquer defesa de uma norma que estabeleça direitos de uso que não sejam exclusivos e definitivos cai numa contradição performativa por defender uma norma que, ao invés de evitar, irá necessariamente gerar mais conflitos, o que entra em contradição com o próprio objetivo da argumentação sobre normas: resolver conflitos.

Aqui temos a defesa da Ética Argumentativa sobre o ponto de vista de suas bases pragmáticas, sem as quais não poderia se sustentar como argumento, mas com as quais persiste até hoje como esta teoria inabalável.

Referências

Hans Hermann Hoppe — Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo

Hans Hermann Hoppe — A Ética e a Economia da Propriedade Privada

Hans Hermann Hoppe — Argumentation Ethics (PFS 2016)

Hans Hermann Hoppe — A Ciência Econômica e o Método Austríaco

Marian Eabrasu — Uma Respostas às Críticas Correntes Formuladas Contra a Ética Argumentativa Hoppeana

Jürgen Habermas — Notas Pragmáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso

Karl-Otto Apel — The Problem of Philosophical Foundations in Light of a Transcendental Pragmatics of Language

Robert Alexy — Teoria da Argumentação Jurídica

Leonard Peikoff — History of Philosphy: Aristotle The Father of Logic

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